Farei aqui a singela homenagem de minhas memórias, pelas palavras, aos idos anos de minha infância.
Esta não consegue traduzir de exato minhas verdadeiras emoções, mas é digna de representar o que há muito guardo comigo.
É engraçado como, à cada forçosa consulta ao passado, fatos já quase empueiradamente esquecidos são trazidos de volta ao âmago de minha existência.
Por onde devo começar?
Bem, como esse breve relato não tem o atrevimento de memórias mais longas, devo me ater apenas àquelas que surgirem quase que naturalmente, assim como em uma livre associação.
Nossas lembranças são repletas de cheiros, cores e situações.
Lembro-me, primeiro, do cheiro da comida que minha mãe preparava. O sabor do tempero que saía da cozinha e entrava em minhas narinas, logo pela manhã, ao acordar.
O natal sempre foi presente em minhas breves consultas ao passado.
O primeiro deles que consigo me lembrar é aquele em que colocava bolas vermelhas na árvore. E para que isso fosse feito de uma maneira razoável, era preciso que subisse naquele carro prata.
E com o mesmo afinco, me deitava sobre o chão frio para desenhar. Sempre gostei de me expressar, e nas primeiras vezes, bastava um lápis e um papel. Lembro-me ainda que, nesse dia, o cachorro compartilhou comigo um copo de leite - a doce liberdade de não ter repulsa.
Ainda nesta cidade, consigo ter realmente aquelas recordações que quase nos fazem querer retomar nosso passado em um barco guiado por nossas próprias lágrimas.
Brincadeiras tão criativas. Os dias passados no clube também me fazem fechar os olhos.
Foi ainda nessa época que soube como era bom ter amigos, e hoje sei que apenas nessa época é que podemos ter amigos, na melhor acepção e sentido que a palavra merece. Primeiras experiências dormindo fora (e sentindo saudade de casa), festas na garagem do vizinho, uma tarde inteira dedicada à filmes divertidos e pipoca. Como era bom o achocolatado preparado pela minha querida Tia (amiga de mamãe): pouco chocolate e muito leite.
A liberdade de correr com minha bicicleta vermelha, já sem rodinhas, por todo o condomínio, foi a melhor lição que tive sobre o que ela representava. Nunca, depois, mesmo nas escolas
tentando atribuir um verdadeiro sentido à esta palavra, consegui tomá-la tão verdadeiramente como antes.
Em tempos à frente, mas não menos distantes, a liberdade da infância adequou-se aos moldes da cidade grande.
Mas isso não significou um cerceamento ao meu direito de ir e vir - foi apenas uma nova experiência de vida que criaria o homem de hoje.
Já não podia mais andar a pé de lá para cá (e quando a necessidade me parecesse conveniente, ir com a bicicleta), nem subir na árvore para comer doces frutas.
Carros e mais carros tomavam por completo as ruas da grande cidade, a capital.
A escola já não era sinônimo de tutela, mas de cautela. O aprendizado não se limitou às aulas de informática (que eram novidade), ou aos exercícios de criatividade limitada. Conquistei os primeiros amigos fiéis e inimigos temporários. Uma verdadeira gangue se formou. Tentava, por presentes, também conquistar as mulheres. Para as professoras, balas e poemas. Para as colegas, jóias furtadas da mamãe (mas que sempre eram recuperadas por elas, coitada).
Pratiquei esportes.
Soltei pipa, e até incendiei um lote sem querer.
Carnavais na escola, festas juninas, teatros, cinema, viagens, o coelho da páscoa, folclore, dia das mães, dia dos pais, natais, aniversários. Tudo isso que uma criança deve experimentar, eu experimentei várias vezes.
Fui muito feliz, muito feliz mesmo.
Usei aparelho. Usei óculos... e chorei.
Chorei por medo, sempre. Fui abandonado, de certo modo.
Chorei por não entender.
E hoje, quando não consigo sorrir por coisas que antes me faziam sorrir, quando não consigo temer por coisas que antes temia, e quando não vejo motivo para acreditar
nas coisas em que acreditava, sinto que cresci.
E não percebi.
Lágrimas petrificadas nas lembranças... um breve suspiro.